Abstract
Sex-changing surgery it’s therapeutical and, therefore, unpunishable. The transsexual one seeks these physical changes in order to adjust its body to the corresponding anatomy that lives in its inside which is viewable in its attitudes and choices (Vieira, 2000).Law, Science, Psychology and Medicine must contribute for the reduction of people suffering, recognizing transsexuals’ rights adjusting its gender and documentation. In this research, it is intended to evidence the basic transsexuals’ rights in the Portuguese legislation. The lack of a bioethical perspective made transsexuals victims of intolerance and human ignorance. In a society that considers itself more democratic, the respect and guarantee of minorities’ rights are essential. These minorities side-by-side with other social sectors compose a marginalised segment with which society adopts positions, somehow, discriminatory (Martins, n.d.).
O transexual é o indivíduo que possui características biológicas normais de um sexo, mas que possui a convicção inabalável de pertencer ao sexo oposto. Estes indivíduos recusam completamente o seu sexo biológico, procurando, através de mudanças físicas, adequar os seus corpos à anatomia correspondente à do sexo que existe no interior de cada um e se reflecte nas suas atitudes, gostos e inclinações (Vieira, 2000).
Além das transformações físicas, o transexual deseja fazer corresponder o seu género, ao sexo que a sua personalidade ostenta, solicitando assim o reconhecimento jurídico da sua nova situação, através da modificação do seu sexo e do seu nome no respectivo assento de nascimento, no Registo Civil. Mas, de acordo com Nascimento (2003), o reconhecimento da transexualidade encontra obstáculos no princípio da imutabilidade do sexo, que acompanha o indivíduo desde o nascimento até a morte, como salvaguarda da certeza e da segurança jurídicas.



antes devendo “compeli-lo” a tomar posição sobre o assunto.
Nesta perspectiva desenvolve-se esta pesquisa com o intuito de indagar sobre a relevância dos direitos fundamentais dos transexuais na legislação portuguesa.
Assim, a presente divide-se em duas partes, uma primeira breve, em que se introduzem algumas noções sobre o fenómeno da transexualidade, diferenciando-o de outros casos que muitas vezes com ele se confundem. Compreende-se de modo muito breve os aspectos médicos e psicológicos envolvidos, para melhor se apreender a relevância jurídica da questão transexual.
O reconhecimento jurídico da transexualidade em Portugal é abordado na segunda parte, onde faremos uma análise do que regulamenta esta realidade no nosso País. Não se aprofundarão todas as questões envolvidas na temática em abordagem, não ficando aqui focados os diversos efeitos recorrentes do processo de mudança de sexo pelo transexual como: o casamento, os efeitos relativos ao poder paternal, os efeitos sobre terceiros. Pretende-se nesta segunda parte evidenciar, tendo em conta o objectivo do presente, “o reconhecimento da transexualidade [como] um imperativo de um estado democrático de direito fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais” (Nascimento, 2003, p. 5).
Conceito de transexualidade
O transexual é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante no seu registo de nascimento, reprovando os seus órgãos externos, dos quais deseja livrar-se através do recurso à cirurgia.
Segundo uma concepção moderna, o transexual masculino é uma mulher com corpo de homem, sendo o transexual feminino, obviamente o contrário (Vieira, 2000).
O sentimento que os transexuais afirmam sentir, é tão antigo quanto qualquer outra expressão da sexualidade (Ceccarelli, 2003). Da mitologia greco-romana ao século XIX passando pelas mais variadas fontes literárias e antropológicas, encontram-se relatos de indivíduos que se vestiam como membros do outro sexo, afirmando sentir-se como desse sexo. O que hoje designamos de transexualismo, há muito surge na nossa história, o que é recente é a possibilidade de mudar de sexo pelo recurso a cirurgias e ao tratamento farmacológico que provoca grandes mudanças morfológicas indispensáveis à adaptação ao novo género.
O fenómeno da transexualidade ficou mundialmente conhecido quando em 1952, um fuzileiro naval norte-americano, se submeteu à primeira cirurgia de redefinição do sexo, passando depois disso a chamar-se Christine Jorgensen.
Diagnóstico diferencial
Existe sempre uma grande confusão no imaginário das pessoas em relação aos transexuais, travestis e homossexuais.
Nos travestis encontramos o fetichismo do uso de roupas femininas, comportamento que não encontramos nos transexuais. Os travestis, apesar deste fetichismo, assumem a sua identidade sexual, não havendo discordância entre o seu género, e a sua identidade sexual. Para Ceccarelli (2004), há uma importância muito grande no pénis e na dinâmica psíquica do travesti, o que lhe permite viver a fantasia da mulher fálica. O travesti não procura a cirurgia porque o jogo de esconder e mostrar os seus órgãos genitais constitui uma fonte de erotismo. O travesti não apresenta dúvidas em relação à sua identidade, que é masculina. De acordo com Nascimento (2003), o travestismo é geralmente ocasional e a transexualidade é permanente.
No caso das homossexualidades, os indivíduos assumem o seu género masculino ou feminino mas apresentam uma orientação sexual para indivíduos do mesmo género sexual. Também nesta situação não há discordância entre género e identidade, facto típico dos transexuais.
Os transexuais recusam firmemente ser confundidos com os homossexuais. Segundo os primeiros, a sua sexualidade é dominantemente heterossexual, que é coerente com a sua identidade que dizem possuir. Assim um transexual masculino (mulher com corpo de homem), sente-se atraído por homens, uma vez que toda a sua personalidade é feminina. Nos homossexuais a questão não está no seu género, está nas escolhas sexuais. Os homossexuais estão bem no seu papel de género e identidade, apenas apresentam uma orientação sexual direccionada para indivíduos do mesmo sexo.
Existe ainda o caso das inter-sexualidades como o caso do hermafroditismo ou pseudo-hermafroditismo, entre outras. Nos casos de inter-sexualidades, em que indivíduos sofrem de anomalias ao nível do seu aparelho genital podendo, por exemplo, uma mulher apresentar uma vagina e vestígios de testículos ou apresentar um micro-pénis. Estes indivíduos, perante a sociedade, surgem como vítimas da sua própria anatomia despertando compreensão e compaixão. Enquanto que os transexuais são rejeitados e enfrentam o espanto e o sentimento de horror da sociedade (Viera, 2000).
Características, etiologia e tratamento do transexualismo
O transexualismo foi classificado no manual da Associação Americana de Psiquiatria em 1952, na rubrica das “perturbações sociopáticas da personalidade”, ficando então associado a manifestações patológicas da personalidade, uma vez que muitos consideraram que os transexuais apresentavam, entre outros, desequilíbrios psíquicos, tendências esquizofrénicas e depressivas.
Em 1980, uma revisão do referido manual faz uma abordagem inovadora da transexualidade, separando-a das demais perturbações da personalidade, transportando-a para a rubrica dos distúrbios da Identidade e Género, que engloba três disfunções sexuais: Transexuais, Distúrbios da identidade de género na infância e distúrbios de identidade de género atípica. Esta revisão manteve-se na quarta revisão do Manual em 1994 (Szaniawki, 1998).
De acordo com Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde, o transexualismo é portanto o desconforto com o próprio sexo, desejo de viver como um membro do sexo oposto e a vontade constante de fazer o corpo corresponder ao do sexo oposto, através de cirurgia e tratamento hormonal. O transexualismo classifica-se em primário e secundário. No transexualismo primário os sentimentos que acompanham os indivíduos surgem logo na infância, o período da adolescência é vivido com muito sofrimento. Havendo por isso, muitos casos de depressão e até de suicídio devido ao desgosto que sentem em relação ao seu corpo e pela dificuldade de aceitação da família e dos amigos. No caso do transexualismo secundário, a síndrome manifesta-se apenas na fase adulta, muitas vezes devido ao medo. Os transexuais escondem os seus sentimentos por toda a vida havendo casos até de indivíduos que chegam a casar e ter filhos (Ceccarelli, 2000). Para afirmar o seu desejo de pertença ao sexo oposto, o transexual apresenta comportamentos e hábitos contrários ao seu sexo biológico. Muitas vezes de forma até perigosa para a sua saúde, os transexuais, iniciam os tratamentos hormonais sem qualquer acompanhamento médico.
Qualquer intervenção, terapêutica, ou cirúrgica devem ser alvo de grande acompanhamento uma vez que, tanto a medicação como as cirurgias, têm consequências irreversíveis para a integridade física e psíquica dos pacientes. Existem casos de indivíduos que se auto-mutilam e castram caíndo num vazio emocional porque se arrependem. Tal facto acontece, porque os indivíduos não fizeram uma avaliação correcta da sua identidade. São exemplo deste facto alguns homossexuais ou travestis que julgavam ter uma identidade que depois não se confirma.
Os tratamentos com recurso à psicoterapia, em nada contribuíram para a alteração da identidade. A transexualidade não é um fenómeno passageiro, é antes imutável na maior parte dos casos (Nascimento 2003).
Actualmente a solução para a transexualidade, passa pela adaptação das características sexuais à identidade desejada. Este processo faz-se com o recurso ao acompanhamento psiquiátrico, psicoterapêutico, ou pelo tratamento endocrinológico, culminando na cirurgia, que atribui aos transexuais as características morfológico- genitais do sexo pretendido.
Reconhecimento Jurídico da Transexualidade
A mudança de sexo pelo transexual tem vários reflexos ao nível do Direito, tanto no âmbito do Direito Civil, como na esfera do Direito Penal. Em relação ao Direito Civil, os reflexos produzem-se principalmente no Direito da Família e no que diz respeito ao estado da pessoa. Já no Direito Penal, levanta-se o problema de saber se a cirurgia de transformação a que o indivíduo se submete pode ou não ser considerada um facto ilícito típico nos termos dos artigos 143.º e seguintes (i.e., uma ofensa à integridade física), ou se será antes uma cirurgia médica sujeita ao regime do artigo 150.º, ambos do Código Penal.
As posições contrárias à mudança de sexo entendiam que a cirurgia de transexualização inutilizava a natural diferenciação dos sexos, corrompendo assim a função geneticamente determinada dos órgãos sexuais, a cópula e a reprodução. A alteração de sexo provocaria uma lesão à integridade física da pessoa em nome da mera vontade do transexual ou do carácter da psicossexualidade do indivíduo (Perona, 1998). O sentimento de pertencer a um sexo que não o seu era então considerado um mero capricho. A cirurgia visando adaptar uma função sexual normal a uma falsa e ilegítima identidade era considerada um erro científico, sendo por isso considerada um acto médico arbitrário e, por conseguinte, injustificável e ilícito (Sessarego, 1992).
Relativamente à mudança de sexo, as dúvidas surgem quando se questiona se os transexuais poderão satisfazer a sua sexualidade e afectividade com a pessoa amada, podendo até casar e ter uma vida familiar relativamente normal.
Já no que concerne ao problema da alteração do status sexual mediante a intervenção cirúrgica, várias questões têm sido levantadas, designadamente a de saber até que ponto um indivíduo tem o poder de consentir a ablação de órgãos no seu próprio corpo, ou se, do ponto de vista biológico, a cirurgia possui índole correctiva ou mutiladora.
No que toca ao intersexualismo e ao hemafroditismo, não existem dúvidas quanto à natureza correctiva das intervenções cirúrgicas, as quais têm como objectivo adequar o sexo predominante à sua perfeita funcionalidade (Szaniawski, 1998). Com a evolução no entendimento sobre a transexualidade, o factor psico-social passou a ser considerado um importante componente na composição do sexo. Assim, as cirurgias passaram a ser encaradas como a adaptação da anatomia à identidade sexual.
Na década de sessenta surgiram as primeiras demandas judiciais pela modificação do tipo de sexo da pessoa no respectivo assento de nascimento, com as consequentes repercussões que tal teria na vida sócio-jurídica da mesma. Em alguns países a pressão nesse sentido foi tal que o Legislador foi levado a intervir para regular a questão. Noutros, a ausência de legislação leva a que tal tarefa seja relegada para os tribunais, o que origina necessariamente uma divergência de soluções nem sempre desejável e conveniente à luz do princípio da igualdade (Nascimento 2004).
Na Europa, de país para país a jurisprudência segue caminhos diferentes, conferindo contornos específicos à questão.
Muitos Estados, na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cujas decisões têm carácter vinculativo para os Estados Signatários da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (adiante Convenção) e que, por isso, aceitaram a jurisdição daquele Tribunal, têm reconhecido o direito de os transexuais obterem a alteração do respectivo sexo no âmbito do Registo Civil No entanto, o recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem surge apenas como uma ultima ratio, uma vez esgotadas todas as vias judiciais nacionais[1].
O Tribunal tem fundamentado as suas decisões principalmente com base no artigo 8.º da Convenção. Do teor de tal artigo, que consagra o direito ao respeito pela vida privada e familiar, retira-se que não é compatível com o respeito pela intimidade da vida privada a imposição a uma pessoa, que por indicação médica e através de um tratamento licitamente prosseguido adquiriu a aparência e morfologia características do sexo oposto ao que se encontra indicado no seu assento de nascimento, que mantenha documentos de identidade em flagrante contradição com a sua real e actual aparência.
Em relação à aptidão matrimonial do transexual operado, a posição do Tribunal é a de que as legislações nacionais que negam o direito a contrair matrimónio aos transexuais não violam o artigo 12.º (direito de constituir família) da Convenção.
Alguns países como a Suécia, Alemanha, Itália, Holanda e Dinamarca tiveram um cuidado especial com a transexualidade, alterando ou editando leis que regulamentam as condições em que se pode recorrer à cirurgia e ver o seu registo de nascimento alterado.
Em Portugal, França e Inglaterra não há soluções legais, pelo que, cada decisão é tomada caso a caso. Estas situações provocam uma enorme ansiedade e sofrimento aos transexuais devido ao desgaste decorrente de processos judiciais que se prolongam por muito tempo (Broekman, 1993).
Em 1992, a Divisão de Informações Legislativa e Parlamentar da Assembleia da República, num documento intitulado “Questões de Bioética: Transexualidade” manifestou a necessidade de encontrar uma saída favorável para o problema dos transexuais.
Até Junho de 1995, nenhum médico português poderia realizar cirurgias de mudança de sexo, sob pena de responsabilidade disciplinar. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos, em vigor desde 1985, proibia a esterilização e a mudança de sexo em pessoas normais (artigos 54.º e 55.º). Devido a este facto muitos transexuais recorriam ao estrangeiro limitando-se a solicitar em Portugal, posteriormente, o reconhecimento judicial da sua nova identidade.
Em 1995 foi alterado o Código Deontológico, passando a permitir a realização daquelas cirurgias através de uma alteração ao artigo 55.º, o qual passou a mencionar ser ” proibida a cirurgia para rea-tribuição de sexo em pessoas morfologicamente normais salvo nos casos clínicos adequadamente diagnosticados como transexualismo ou disforia do género” (sublinhado nosso).
A primeira cirurgia de alteração de sexo em Portugal aconteceu em Maio de 1998, no Hospital de Santa Maria.
Na falta de legislação, o reconhecimento jurídico da nova identidade deverá ser solicitado ao tribunal após as transformações corporais, mediante Acção de Estado com processo ordinário. No entanto, de acordo com Marques (n.d.), o uso dessa via processual traduz-se num processo moroso, inadequado à protecção dos direitos do transexual. A mudança do nome faz-se mediante um requerimento à Conservatória do Registo Civil, através de petição dirigida ao Ministro da Justiça, nos termos do artigo 278.º e seguintes do Código do Registo Civil.
Na falta de norma legal aplicável ao caso, verifica-se a existência de uma lacuna da lei, a qual, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Código Civil, deverá ser integrada através da analogia. No entanto, na falta de casos análogos, conforme estatui o n.º 3 daquele preceito, deverá a situação ser resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, dentro do espírito do sistema. Como é bom de ver o procedimento que se acaba de explanar conduz à já supra referida divergência de soluções.
Descrevem-se de seguida algumas decisões proferidas pelos tribunais portugueses, quer em sentido favorável, quer em sentido contrário à redefinição de sexo pelos transexuais.
A Jurisprudência Portuguesa e a Transexualidade
Cumpre agora apresentar algumas decisões judiciais em sentidos divergentes, demonstrativas das disparidades no reconhecimento jurídico da alteração de sexo.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.01.1984, decidiu-se que « I - O transexual, ou seja, o indivíduo cujo perfil psicológico profundo é contrário ao seu cariotipo, tem tendência insensível de fazer coincidir sua aparência sexual com o seu verdadeiro sentir,"corrigindo, assim, a natureza". II - Deste modo, um pseudo-hermafrodita masculino, que mediante operações tomou a aparência física da mulher, tem direito, visto a lei portuguesa o não proibir, ainda que o não preveja, de ver rectificado o seu registo civil, de forma a que dele passe a constar ser indivíduo do sexo feminino e não masculino».
Também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 04.05.1984, decidiu que « I – A transsexualidade não está regulamentada na nossa ordem jurídica, havendo que tratá-la segundo a norma que o intérprete criaria se houvesse que legislar dentro do espírito do sistema. II - O respeito pela personalidade moral do indivíduo impõe o reconhecimento da mudança de sexo, ainda que voluntariamente obtida pelo próprio e a sua consagração no registo civil ».
De extrema clareza é o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.06.2004, que pela sua importância se junta em apêndice, segundo o qual: « (…) 12. Pode concluir-se do que se deixou dito que, na medida do possível, os factos inscritos no registo devem corresponder à realidade;(…) 27. À guisa de conclusão dir-se-á que, por não existir obstáculo negativo à mudança de sexo, para que o registo continue a cumprir o seu papel de dar publicidade aos factos relevantes da sã convivência social, por forma verdadeira, entende-se que se observa o espírito do sistema criando uma norma que permita a alteração do assento de nascimento, por averbamento, no que se refere ao requisito especial do sexo, sempre que ocorra mudança físico-anatómica do sexo da pessoa cujo nascimento foi anteriormente registado».
Já em sentido oposto, refira-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.11.1988, que negou provimento ao recurso de sentença que indeferiu o pedido de alteração do género no assento de nascimento de um transexual, no qual se decidiu que: « I - A transexualidade é a convicção íntima e inata da pessoa de pertencer ao outro sexo e neste caso a operação jamais poderá mudar o verdadeiro sexo biológico, quaisquer que sejam os métodos cirúrgicos e tratamentos médicos utilizados; II - Não sendo o recorrente um transexual, não pode o tribunal dizer quais os direitos que estes porventura tenham de ver alterada a menção do seu sexo no registo civil; III - E sendo a transexualidade a causa de pedir, não pode definir-se das consequências da mudança do sexo aparente, por virtude da vontade do indivíduo ou por causa diversa da transexualidade, porque fazê-lo seria grave atentado aos limites da actividade do juiz.»
Os direitos fundamentais como fundamento jurídico da mudança de sexo.
É importante que a alteração de sexo seja reconhecida juridicamente, designadamente, através da “redesignação” do género da pessoa que foi objecto da cirurgia.
Em Portugal, o tratamento legal que tem sido dado a este problema radica, sobretudo, no princípio máximo da defesa e salvaguarda da dignidade da pessoa humana, que substancia um dos princípios basilares do nosso Estado de Direito Democrático.
Por outro lado, para a abordagem jurídica da questão em apreço releva igualmente o vasto leque de Direitos Fundamentais que a nossa Constituição reconhece ao indivíduo.
A dignidade da pessoa e a sua defesa máxima encontram-se na base de todos os direitos fundamentais, conferindo-lhes unidade de sentido e de valor.
Ao longo da análise do catálogo dos direitos constitucionalmente reconhecidos, e segundo entende também Andrade (2000), é evidente que a defesa da dignidade e integridades humanas inerem ao contudo intrínseco de cada um dos direitos, os quais explicitam e concretizam os aludidos princípios basilares.
O principio da dignidade da pessoa humana
A pessoa humana é entendida como um ser em contínuo processo de autorealização pessoal e social, cujo valor não é susceptível de ser objectivado. Aí reside a sua dignidade, o seu direito à autodeterminação e desenvolvimento no seio da sociedade em que se insere. A dignidade da pessoa impõe o respeito incondicional pelos seus direitos Silva e Silva (sd).
Os Direitos Fundamentais
A problemática transexual relaciona-se especialmente com os direitos, liberdades e garantias, nomeadamente com o direito à integridade pessoal, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e com o direito à identidade pessoal, consagrados nos artigos 25.º e 26.º da Constituição.
Não obstante, importa ainda referir a importância do direito à saúde (artigo 64.º), enquadrado na parte relativa aos chamados direitos económicos, sociais e culturais.
O direito à identidade pessoal
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, o sentido do direito à identidade pessoal assegura aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo singular e irredutível na sua personalidade.
Para Canotilho, tal direito abrange o direito ao nome e à historicidade pessoal, incluindo o direito de acesso aos dados de identificação civil da pessoa e a possibilidade de o indivíduo solicitar a rectificação das informações a ele relativas. No entanto, o próprio autor questiona se, além do direito à conservação e protecção da identidade pessoal, não existirá também um direito a obter a mudança de identidade.
Para Nascimento (2003) a identidade de uma pessoa deve reflectir quem ela é realmente, não lhe podendo ser negado o direito de ver representada a sua pessoa e a sua verdade histórico-individual. O apelo à identidade pessoal funciona nos transexuais como um apelo da pessoa para ser ela mesma, o que passa por afirmar o sexo que sente e vive. Para Nascimento (2003), o sexo, uma qualidade inerente ao Ser Humano, influencia todos os demais aspectos da personalidade da pessoa. Ter um sexo ou outro não é de todo indiferente. Ser obrigado a conservar o sexo contrário do que se aparenta, sente e vive impossibilita a verdade histórico-individual. Sendo assim, manter os transexuais no sexo biológico que rejeitam é impedi-los de ver ser representado o seu ser essencial.
O direito à identidade sexual
O direito à identidade sexual é entendido como o mais novo direito pessoal e, embora não se encontre referido expressamente na Constituição, pode ser inferido do direito à identidade pessoal. Consagrando a nossa Constituição um catálogo aberto de Direitos Fundamentais, a possibilidade de desenvolver novas gerações de direitos surge conforme as necessidades de protecção de bens pessoais, atendendo às circunstâncias de cada época (Vieira de Andrade, 2001).
O fenómeno transexual é algo recente, tendo surgido na problemática jurídica portuguesa nos anos sessenta, altura em que, o direito à identidade sexual passou a ser visto como uma nova dimensão normativa do direito à identidade pessoal. O Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 9 de Novembro de 1993, concedeu provimento a recurso de decisão que indeferiu um pedido de alteração do sexo no Registo Civil por parte de um transexual, por considerar que “ sendo o sexo um dos fundamentais elementos distintivos da pessoa física e um factor relevante da personalidade, tem de reconhecer-se que o direito à identidade pessoal comporta a identidade sexual, que exige não só o respeito da esfera pessoal e a protecção contra a ingerência de outros, como também a garantia da livre e consciente escolha dessa identidade e, com ela, dado modo de ver em sociedade e na família”.
O direito ao desenvolvimento da personalidade
Inserido na Constituição aquando da Revisão Constitucional de 1997, já tinha acolhimento constitucional no próprio principio da dignidade da pessoa humana, sendo o seu conteúdo um corolário do reconhecimento desse princípio como valor fundamental no qual se baseia o Estado (Pinto, 1999).
O direito ao desenvolvimento da personalidade, consagrado na Constituição da República Portuguesa, desdobra-se em duas dimensões: a protecção geral da personalidade e o reconhecimento de uma liberdade geral de acção. O direito ao desenvolvimento da personalidade protege a individualidade do Ser Humano perspectivado no seu desenvolvimento. Pressupõe a liberdade para a autoconformação, que refere que a pessoa deve poder seguir as suas próprias concepções e projectos de vida. Para Nascimento (2003), reconhecer a possibilidade de redesignação de sexo conduz a que se reconheça o direito de cada um ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Para esta autora o sexo não é uma fatalidade biológica, mas sim o resultado de um caminho existencial que comporta a escolha do Ser Humano de viver dentro do sexo que corresponda à sua vocação existencial. Quem está convencido de pertencer ao género contrário dentro do qual nasceu, tem de ter o direito de desenvolver livremente a sua personalidade, desde que não prejudique os direitos dos demais.
O direito à saúde
O direito do transexual em ver reconhecida a sua mudança de sexo decorre do direito à saúde (artigo 64.º da Constituição). Assim, o recurso à cirurgia visa possibilitar a harmonização da sua morfologia à sua identidade sexual, o que constitui por si só um processo terapêutico.
Este processo é fundamental para o bem-estar físico e psicológico dos transexuais que vêem corrigido o erro da natureza de que se dizem vítimas. Este direito é consonante com o conceito de saúde defendido pela Organização Mundial de Saúde que refere que: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade (...)”.
O direito de dispor do próprio corpo
Muitos transexuais viram os seus pedidos de mudança de sexo indeferidos por não se reconhecer a existência deste direito, uma vez que se entendia que não havia fundamento algum que pudesse permitir as modificações em corpos sãos e que a cirurgia implicaria a sua lesão. De acordo com Remédio Marques (1998), o direito do transexual de dispor do próprio corpo não é um interesse em si mesmo. O que o transexual procura é adaptar o seu corpo à sua verdadeira essência existencial e, desta forma, actua de plena consciência.
O intuito que subjaz à cirurgia de mudança de sexo, conjugado com o consentimento do transexual que depende de tal intervenção cirúrgica para se “reencontrar consigo mesmo” afasta o possível enquadramento da alteração como ofensa corporal ou sequer lesão.
Discussão
O reconhecimento Jurídico da transexualidade supõe possibilitar ao indivíduo viver de acordo com o sexo que o sujeito existencialmente sente como seu, que corresponde à maneira como sente e pensa, mas que se opõe ao seu sexo biológico constante no Registro. A única alternativa para atenuar o sofrimento dos transexuais, passa pela cirurgia e pelo recurso à medicação.
A análise da jurisprudência portuguesa demonstra que os argumentos contrários à mudança do sexo apelam normalmente, ao conceito de sexo biológico imutável. Os argumentos favoráveis apoiam-se predominantemente na importância dos aspectos psicossociais para determinar o sexo dos indivíduos.
“A transexualidade, se regulamentada adequadamente, não apresenta qualquer ameaça à segurança jurídica, à ordem pública ” (Nascimento, 2003 p. 48).
O conjunto de Direitos Fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, especialmente os direitos à identidade pessoal e sexual, o direito ao desenvolvimento da personalidade e o direito à saúde têm a força de afastar no posicionamento jurídico sobre a problemática a rigidez dos argumentos contrários à mudança de sexo pelos transexuais
A regulação da transexualidade por parte do Legislador é essencial para o tratamento dos inúmeros problemas que se insurgem ao bem-estar físico e psíquico destes indivíduos.
Referências
Assembleia da Republica, (1992), Divisão de informação legislativa e parlamentar “Questões de Biótica”, Tomo II, Transexualidade, Colecção Temas, 3,1 .
Broekman, J. M. “Derecho y Antropologia”. Editorial Civitas, Madrid.
Canotilho, J. J. Gomes e Moreira. Vital (1993). “Constituição da Republica Portuguesa Anotada”.
Canotilho, J. J. Gomes. “ Direito constitucional e teoria da Constituição”. 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2002.
Ceccarelli, R. P. (1997). A questão transexual, Viver Psicologia, www.ceccarelli.psc.br/artigos.
Ceccarelli, R. P.(2000). A questão transexual, SOMOS, 2, www.ceccarelli.psc.br/artigos.
Ceccarelli, R. P. (2003). Transexualismo e caminhos da pulsão. Revista do Circulo de Minas Gerais, ano XXV, 50, 37-43, www.ceccarelli.psc.br/artigos
Câmara (2002).
Martins, A. R. (s.d). Transexualismo Aspectos jurídicos e bioéticos. http://tjweb.tj.sc.gov.br/cejur/artigos/direitocivilprocessual/transexualismo_rode_martins.pdf
Miranda, Jorge (2000). Manual de direito Constitucional, IV, 3.ª, Edição, Coimbra Editora, Coimbra.
Nascimento, M. L. (2003), Os transexuais e os direitos fundamentais. Relatório de Direitos Fundamentais. Curso de mestrado em Ciências Jurídicas Políticas. Universidade Clássica de Lisboa.
Perona, J. L. G. (1998). La problemática jurídica de la transexualidad. McGraw-Hill , Madrid.
Pinto, P. M. (2000). O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Coimbra Editora, Coimbra.
Remédio Marques (1988). Transexualidade o reconhecimento judicial da mudança de sexo e o direito português. Alguns problemas, Tribuna da Justiça, n.º 36, Dezembro de 1987 p. 11 a 14; n.º 37, Janeiro de 1988, p. 10 a 13; n.º 38, Fevereiro de 1988, p. 10 a 13; n.º 39, Março de 1988, p.9 a 11; n.º 40, Abril de 1988, p. 11 a 15.
Sessarego, C. F. (1992). Derecho a la identidad personal. Editorial Astrea, Buenos Aires.
Szaniawki, E.(1998). Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. Editora Revista dos tribunais.
Vieira, A. J. C. (2001). “ Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976” , 2.ª Edição, Almedina, Coimbra.
Viera, T. R. (2000). Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do transexualismo. Psicólogo informação.n.º4
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Janeiro de 1984, Colectânea de Jurisprudência, 1984, Tomo II
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4 de Maio de 1984, Colectânea de Jurisprudência, 1984, Tomo II
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Novembro de 1988
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Junho de 2004, Colectânea de Jurisprudência, 2004, Tomo II
[1] De referir que perante aquele tribunal só podem ser demandados os respectivos Estados.
Lisboa, 22 de Junho 2004
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Flávio Joaquim Bogalhão do Casal) (Vencido, pois entendo que devia ser integralmente confirmada a decisão recorrida.)
2º Adjunto (Rogério Sampaio Beja)
Vânia Maria Beliz Ferreira
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Junho de 2004
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2518/2004-1
Relator:
Descritores:
TRANSEXUALIDADE
REGISTO CIVIL
REGISTO CIVIL
Nº do Documento:
RL
Data do Acordão:
06/22/2004
Votação:
MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral:
S
Privacidade:
1
Meio Processual:
APELAÇÃO
Decisão:
REVOGADA
Sumário:
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Autora:
1º - (A).
1.1.2. Ré:
1º - ESTADO PORTUGUÊS.
2º - INCERTOS.
1. RELATÓRIO:
1.1. Das partes:
1.1.1. Autora:
1º - (A).
1.1.2. Ré:
1º - ESTADO PORTUGUÊS.
2º - INCERTOS.
*
1.2. Acção e processo:
Acção declarativa com processo ordinário.
Acção declarativa com processo ordinário.
*
1.3. Objecto da apelação:
1. A sentença de fls.119 a 130, pela qual a acção foi julgada improcedente.
1. A sentença de fls.
*
1.4. Enunciado sucinto das questões a decidir:
O sentido da norma a criar em face da lacuna da lei quanto à possibilidade de mudança jurídica de sexo.
O sentido da norma a criar em face da lacuna da lei quanto à possibilidade de mudança jurídica de sexo.
*
2. SANEAMENTO:
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.
Foram colhidos os vistos.
Não se vislumbram obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que cumpre apreciar e decidir.
*
3. FUNDAMENTOS:
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
Os constantes de fls.120 a 122 da fundamentação de facto da sentença, para os quais se remete, nos termos do art. 713º nº 6 do C.P.C., por não terem sido impugnados nem serem de alterar oficiosamente.
3.1. De facto:
Factos que este Tribunal considera provados:
Os constantes de fls.
*
3.2. De direito:
1. A única questão que importa apreciar e decidir é a de saber qual a norma que o interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, relativamente à matéria da alteração jurídica do sexo, uma vez que esta constitui uma verdadeira lacuna da lei (art. 10º nº 3 do C.Cv.).
2. Segundo a sentença recorrida a norma a criar teria o seguinte teor: “A menção relativa ao sexo do registado, constante do assento de nascimento, não pode ser modificada pelo mero facto de o indivíduo a que se refere o registo ter deixado de possuir todos os caracteres morfológicos do seu sexo de origem e ter tomado uma aparência externa que o aproxima do sexo oposto, em consequência de tratamentos médico-cirúrgicos a que se tenha voluntariamente submetido.” Segundo o Recorrente e o Ministério Público, o respeito pela personalidade moral do Autor impõe o reconhecimento da mudança do sexo, ainda que voluntariamente obtida pelo próprio e a sua consagração no Registo Civil. Quid Juris?
3. A matéria é melindrosa e invulgar, pelo que se impõe uma aproximação à solução final efectuada por fases concêntricas, de modo a delimitar paulatinamente o problema. Em ordem a esse escopo, começar-se-á, pela delimitação negativa externa.
4. Assim, importa dizer que não se conhece norma que proíba a mudança voluntária de sexo, ou que a considere acto criminoso ou atentatório dos bons costumes. Afirmação que está, aliás, em sintonia com o pressuposto do problema, ou seja, a existência de uma lacuna no sistema jurídico português relativamente à possibilidade jurídica da mudança de sexo.
5. Nova delimitação: a questão não é registal, como bem se disse na sentença, pois que não existe erro ou desconformidade entre o que se declarou e exarou no registo, uma vez que à data em que tal declaração e menção registal foram efectuadas, o sujeito tinha fisicamente o sexo declarado, no caso dos autos, o sexo masculino. A questão tem de ser resolvida à luz duma acção que tem por objecto o estado das pessoas.
6. Mas, apesar disso, há que ter presente a finalidade do registo civil, pois que, como também muito bem se disse na sentença, o que em termos finais juridicamente o Autor pretende é a alteração da menção relativa ao sexo constante do seu assento de nascimento.
7. Ora, é sabido que, os registos em geral, de que o civil não constitui excepção, têm por finalidade dar publicidade a certos factos que a Ordem Jurídica considerou serem relevantes para a sã convivência social, permitindo, desse modo, o seu conhecimento à generalidade das pessoas. Entre eles figura, em sede civil, o nascimento, logo em primeiro lugar (art. 1º nº1 a ) do C.R.C.).
8. No âmbito do registo do facto nascimento, a lei erigiu como requisito especial, entre outros, a indicação do sexo (art. 102º nº 1 b) do C.R.C.), o que se afigura facilmente compreensível, uma vez que é um elemento da identidade de cada uma das pessoas em geral que assume a maior importância, uma vez que é naturalisticamente muito mais importante conhecer-se o sexo, do que o nome, próprio ou dos pais, ou mesmo o tempo e lugar em que ocorreu o nascimento. O sexo é um elemento que opera um laço de pertença (e simultaneamente de exclusão) como nenhum outro atributo relativo ao nascimento: ter-se nascido hoje ou ontem, aqui ou ali, ou mesmo ser-se filho deste ou daquele não tem de forma alguma o mesmo estigma do que ter-se nascido com um ou outro sexo.
9. Por isso, como se disse, compreende-se perfeitamente que a Lei Registal Civil tenha elevado à categoria de requisito especial, entre outros, o sexo.
10. Ora, o registo, enquanto forma de dar publicidade a certos factos, deles constando certas características, consideradas relevantes, só tem valor e interesse para a Sociedade em Geral, sua destinatária principal, se esse mesmo registo estiver conforme à realidade. Se do registo constar algo que não tenha correspondência com a realidade, ele torna-se, em vez de um factor de estabilidade social, um elemento de conflito, porque enganoso.
11. Daí a importância dada a toda a matéria do Suprimento da Omissão (art. 83º, 84º), da Inexistência Jurídica do Registo (art. 85º, 86º) da Nulidade do Registo (art. 87º a 90º) e da respectiva Rectificação do Registo (art. 92º a 95º). constante do próprio Código de Registo Civil.
12. Pode concluir-se do que se deixou dito que, na medida do possível, os factos inscritos no registo devem corresponder à realidade.
13. Importa agora analisar a questão pela perspectiva da pessoa. Assim, antes do mais, a realidade é que a evolução médico-cirúrgica permite, nos nossos dias, operar a ablação dos órgãos sexuais masculinos principais, o pénis e os testículos, e implantar em seu lugar uma vagina. Do mesmo modo que a ministração de estrogénios e anti-andrógenos permitem levar ao crescimento de mamas, à eliminação de pelos na face e no tronco e membros em geral, bem como à aquisição de pele fina.
14. Ora, todos estes elementos são típicos de seres humanos do sexo feminino. Por isso, a conclusão de que a realidade com que se depara é que o A., uma vez submetido à intervenção cirúrgica e tratamento acima referidos, apresenta-se fisicamente como um ser humano do sexo feminino.
15. A este “aspecto” do A., e por causa dele, associa-se uma tendência congénita no campo do psiquismo que o faz ter apetência pelos indivíduos do sexo masculino, e gostar das actividades mais comummente ligadas ao sexo feminino, como sejam as que se prendem com os cuidados da casa.
16. Em suma, o A. é hoje um ser do sexo feminino, tendo adequado o seu corpo, originariamente masculino, ao seu psiquismo, originariamente feminino. É isso com que a sociedade em geral se depara, desde que não conheça a “história sexual” do A. e o seu genótipo cromossomático 46 XY, elementos que são completamente irrelevantes para se determinar o sexo a que o A. pertence. O que releva neste particular é a forma como a sociedade em geral considera o A., com as características que actualmente apresenta, e não o que a comunidade científica pode apurar em função da investigação genética.
17. Note-se que o sexo tem a maior importância no comportamento social de cada um, em razão do papel social que normalmente se atribui aos seres de cada um dos sexos, e, claro, no que se refere à procriação. Mas, neste campo, o A. apresenta-se como um indivíduo estéril, por ausência de órgãos reprodutores, nisso não se diferenciando de tantos outros seres humanos que não operaram a transsexualidade.
18. Por isso, importa agora formular a seguinte questão: não sendo proibido, nem atentatório dos bons costumes a implantação voluntária de órgãos do sexo oposto àqueles com que se nasceu, deve o registo manter-se em desconformidade com a nova realidade relativa ao sexo adquirido por quem efectuou a dita implantação?
19. Antes de se responder a esta questão importa ainda dizer duas palavras de discordância relativamente à fundamentação da posição assumida na sentença que se baseou, sobretudo, na posição de Remédio Marques.
20. Este autor parece considerar como realidade normal, vulgar, de ocorrência frequente o problema da transsexualidade, quando consabidamente não é. Na verdade, toda a gente sabe que normalmente os seres sexuados têm um comportamento próprio em função do sexo físico com que nascem. Mas, excepcionalmente, a adequação entre essas duas realidades não coincide, propendendo o comportamento para um dos sexos e sendo o sexo anatómico de sinal oposto. Estes casos são anormais, no sentido de não serem vulgares, não serem frequentes. E, por isso, merecem também certamente um tratamento especial.
21. Nestes casos existe uma desconformidade entre o físico e o psíquico que não é natural, e é fonte de grande sofrimento por parte de quem padece de tal desconformidade. Note-se que a desconformidade não foi desejada. O que o “paciente” apenas deseja é diminuir o mal com que nasceu, tentando aproximar o seu físico ao seu psiquismo.
22. Então poderá ser-se levado a perguntar porque é que não transmuta o seu psiquismo de forma a adequá-lo ao seu sexo físico? Pois, por estranho que pareça, é mais fácil à ciência médica alterar o sexo físico do ser humano do que alterar a sua fenomenologia psíquica. O que significa o primado da importância desta sobre aquele. O Homem é o que o seu ser psíquico for, independentemente do seu sexo físico, porque ainda que não opere a ablação dos seus órgãos sexuais principais e os substitua por outros do sexo oposto, o que releva socialmente é o seu comportamento, o modo como se vê frente aos outros seres humanos, particularmente no domínio do relacionamento em função do sexo, e da forma como é visto pelos outros.
23. Por isso, a mudança se sexo, ainda que voluntária, deve ser considerada como algo patológico, sem dúvida, mas não tem qualquer carga moral negativa, porque a razão de ser dela reside numa desconformidade natural, não querida pelo respectivo sujeito.
24. Não há, por isso, com o respeito devido pela opinião oposta, qualquer lascismo do Direito, sempre que se pretenda retractar uma situação que, embora, patológica, tem existência real.
25. E, com isto facilmente se conclui que a resposta à questão acima colocada só pode merecer a resposta de que o registo não se deve manter em desconformidade com a realidade. Não há fundamento para tal.
26. Pelo contrário, se, perante o vício da inexistência ou nulidade originária, o registo deve ser convalidado, porque é que não deveria de ser perante um vício superveniente (se é que de vício se pode chamar a essa desconformidade)?
27. À guisa de conclusão dir-se-á que, por não existir obstáculo negativo à mudança de sexo, para que o registo continue a cumprir o seu papel de dar publicidade aos factos relevantes da sã convivência social, por forma verdadeira, entende-se que se observa o espírito do sistema criando uma norma que permita a alteração do assento de nascimento, por averbamento, no que se refere ao requisito especial do sexo, sempre que ocorra mudança físico-anatómica do sexo da pessoa cujo nascimento foi anteriormente registado.
28. Julga-se, assim, procedente a posição do Recorrente, embora por fundamentos diferentes.
29. Em consequência da posição assumida por este Tribunal, defere-se também o pedido de alteração do nome próprio para (L), visto que é por ele que o A. é tratado e conhecido no seu meio.
1. A única questão que importa apreciar e decidir é a de saber qual a norma que o interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema, relativamente à matéria da alteração jurídica do sexo, uma vez que esta constitui uma verdadeira lacuna da lei (art. 10º nº 3 do C.Cv.).
2. Segundo a sentença recorrida a norma a criar teria o seguinte teor: “A menção relativa ao sexo do registado, constante do assento de nascimento, não pode ser modificada pelo mero facto de o indivíduo a que se refere o registo ter deixado de possuir todos os caracteres morfológicos do seu sexo de origem e ter tomado uma aparência externa que o aproxima do sexo oposto, em consequência de tratamentos médico-cirúrgicos a que se tenha voluntariamente submetido.” Segundo o Recorrente e o Ministério Público, o respeito pela personalidade moral do Autor impõe o reconhecimento da mudança do sexo, ainda que voluntariamente obtida pelo próprio e a sua consagração no Registo Civil. Quid Juris?
3. A matéria é melindrosa e invulgar, pelo que se impõe uma aproximação à solução final efectuada por fases concêntricas, de modo a delimitar paulatinamente o problema. Em ordem a esse escopo, começar-se-á, pela delimitação negativa externa.
4. Assim, importa dizer que não se conhece norma que proíba a mudança voluntária de sexo, ou que a considere acto criminoso ou atentatório dos bons costumes. Afirmação que está, aliás, em sintonia com o pressuposto do problema, ou seja, a existência de uma lacuna no sistema jurídico português relativamente à possibilidade jurídica da mudança de sexo.
5. Nova delimitação: a questão não é registal, como bem se disse na sentença, pois que não existe erro ou desconformidade entre o que se declarou e exarou no registo, uma vez que à data em que tal declaração e menção registal foram efectuadas, o sujeito tinha fisicamente o sexo declarado, no caso dos autos, o sexo masculino. A questão tem de ser resolvida à luz duma acção que tem por objecto o estado das pessoas.
6. Mas, apesar disso, há que ter presente a finalidade do registo civil, pois que, como também muito bem se disse na sentença, o que em termos finais juridicamente o Autor pretende é a alteração da menção relativa ao sexo constante do seu assento de nascimento.
7. Ora, é sabido que, os registos em geral, de que o civil não constitui excepção, têm por finalidade dar publicidade a certos factos que a Ordem Jurídica considerou serem relevantes para a sã convivência social, permitindo, desse modo, o seu conhecimento à generalidade das pessoas. Entre eles figura, em sede civil, o nascimento, logo em primeiro lugar (art. 1º nº
8. No âmbito do registo do facto nascimento, a lei erigiu como requisito especial, entre outros, a indicação do sexo (art. 102º nº 1 b) do C.R.C.), o que se afigura facilmente compreensível, uma vez que é um elemento da identidade de cada uma das pessoas em geral que assume a maior importância, uma vez que é naturalisticamente muito mais importante conhecer-se o sexo, do que o nome, próprio ou dos pais, ou mesmo o tempo e lugar em que ocorreu o nascimento. O sexo é um elemento que opera um laço de pertença (e simultaneamente de exclusão) como nenhum outro atributo relativo ao nascimento: ter-se nascido hoje ou ontem, aqui ou ali, ou mesmo ser-se filho deste ou daquele não tem de forma alguma o mesmo estigma do que ter-se nascido com um ou outro sexo.
9. Por isso, como se disse, compreende-se perfeitamente que a Lei Registal Civil tenha elevado à categoria de requisito especial, entre outros, o sexo.
10. Ora, o registo, enquanto forma de dar publicidade a certos factos, deles constando certas características, consideradas relevantes, só tem valor e interesse para a Sociedade em Geral, sua destinatária principal, se esse mesmo registo estiver conforme à realidade. Se do registo constar algo que não tenha correspondência com a realidade, ele torna-se, em vez de um factor de estabilidade social, um elemento de conflito, porque enganoso.
11. Daí a importância dada a toda a matéria do Suprimento da Omissão (art. 83º, 84º), da Inexistência Jurídica do Registo (art. 85º, 86º) da Nulidade do Registo (art. 87º a 90º) e da respectiva Rectificação do Registo (art. 92º a 95º). constante do próprio Código de Registo Civil.
12. Pode concluir-se do que se deixou dito que, na medida do possível, os factos inscritos no registo devem corresponder à realidade.
13. Importa agora analisar a questão pela perspectiva da pessoa. Assim, antes do mais, a realidade é que a evolução médico-cirúrgica permite, nos nossos dias, operar a ablação dos órgãos sexuais masculinos principais, o pénis e os testículos, e implantar em seu lugar uma vagina. Do mesmo modo que a ministração de estrogénios e anti-andrógenos permitem levar ao crescimento de mamas, à eliminação de pelos na face e no tronco e membros em geral, bem como à aquisição de pele fina.
14. Ora, todos estes elementos são típicos de seres humanos do sexo feminino. Por isso, a conclusão de que a realidade com que se depara é que o A., uma vez submetido à intervenção cirúrgica e tratamento acima referidos, apresenta-se fisicamente como um ser humano do sexo feminino.
15. A este “aspecto” do A., e por causa dele, associa-se uma tendência congénita no campo do psiquismo que o faz ter apetência pelos indivíduos do sexo masculino, e gostar das actividades mais comummente ligadas ao sexo feminino, como sejam as que se prendem com os cuidados da casa.
16. Em suma, o A. é hoje um ser do sexo feminino, tendo adequado o seu corpo, originariamente masculino, ao seu psiquismo, originariamente feminino. É isso com que a sociedade em geral se depara, desde que não conheça a “história sexual” do A. e o seu genótipo cromossomático 46 XY, elementos que são completamente irrelevantes para se determinar o sexo a que o A. pertence. O que releva neste particular é a forma como a sociedade em geral considera o A., com as características que actualmente apresenta, e não o que a comunidade científica pode apurar em função da investigação genética.
17. Note-se que o sexo tem a maior importância no comportamento social de cada um, em razão do papel social que normalmente se atribui aos seres de cada um dos sexos, e, claro, no que se refere à procriação. Mas, neste campo, o A. apresenta-se como um indivíduo estéril, por ausência de órgãos reprodutores, nisso não se diferenciando de tantos outros seres humanos que não operaram a transsexualidade.
18. Por isso, importa agora formular a seguinte questão: não sendo proibido, nem atentatório dos bons costumes a implantação voluntária de órgãos do sexo oposto àqueles com que se nasceu, deve o registo manter-se em desconformidade com a nova realidade relativa ao sexo adquirido por quem efectuou a dita implantação?
19. Antes de se responder a esta questão importa ainda dizer duas palavras de discordância relativamente à fundamentação da posição assumida na sentença que se baseou, sobretudo, na posição de Remédio Marques.
20. Este autor parece considerar como realidade normal, vulgar, de ocorrência frequente o problema da transsexualidade, quando consabidamente não é. Na verdade, toda a gente sabe que normalmente os seres sexuados têm um comportamento próprio em função do sexo físico com que nascem. Mas, excepcionalmente, a adequação entre essas duas realidades não coincide, propendendo o comportamento para um dos sexos e sendo o sexo anatómico de sinal oposto. Estes casos são anormais, no sentido de não serem vulgares, não serem frequentes. E, por isso, merecem também certamente um tratamento especial.
21. Nestes casos existe uma desconformidade entre o físico e o psíquico que não é natural, e é fonte de grande sofrimento por parte de quem padece de tal desconformidade. Note-se que a desconformidade não foi desejada. O que o “paciente” apenas deseja é diminuir o mal com que nasceu, tentando aproximar o seu físico ao seu psiquismo.
22. Então poderá ser-se levado a perguntar porque é que não transmuta o seu psiquismo de forma a adequá-lo ao seu sexo físico? Pois, por estranho que pareça, é mais fácil à ciência médica alterar o sexo físico do ser humano do que alterar a sua fenomenologia psíquica. O que significa o primado da importância desta sobre aquele. O Homem é o que o seu ser psíquico for, independentemente do seu sexo físico, porque ainda que não opere a ablação dos seus órgãos sexuais principais e os substitua por outros do sexo oposto, o que releva socialmente é o seu comportamento, o modo como se vê frente aos outros seres humanos, particularmente no domínio do relacionamento em função do sexo, e da forma como é visto pelos outros.
23. Por isso, a mudança se sexo, ainda que voluntária, deve ser considerada como algo patológico, sem dúvida, mas não tem qualquer carga moral negativa, porque a razão de ser dela reside numa desconformidade natural, não querida pelo respectivo sujeito.
24. Não há, por isso, com o respeito devido pela opinião oposta, qualquer lascismo do Direito, sempre que se pretenda retractar uma situação que, embora, patológica, tem existência real.
25. E, com isto facilmente se conclui que a resposta à questão acima colocada só pode merecer a resposta de que o registo não se deve manter em desconformidade com a realidade. Não há fundamento para tal.
26. Pelo contrário, se, perante o vício da inexistência ou nulidade originária, o registo deve ser convalidado, porque é que não deveria de ser perante um vício superveniente (se é que de vício se pode chamar a essa desconformidade)?
27. À guisa de conclusão dir-se-á que, por não existir obstáculo negativo à mudança de sexo, para que o registo continue a cumprir o seu papel de dar publicidade aos factos relevantes da sã convivência social, por forma verdadeira, entende-se que se observa o espírito do sistema criando uma norma que permita a alteração do assento de nascimento, por averbamento, no que se refere ao requisito especial do sexo, sempre que ocorra mudança físico-anatómica do sexo da pessoa cujo nascimento foi anteriormente registado.
28. Julga-se, assim, procedente a posição do Recorrente, embora por fundamentos diferentes.
29. Em consequência da posição assumida por este Tribunal, defere-se também o pedido de alteração do nome próprio para (L), visto que é por ele que o A. é tratado e conhecido no seu meio.
*
4 DECISÃO:
1. Por tudo o exposto, concede-se provimento à apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a qual é substituída pela seguinte:
“ O Tribunal julga provada e procedente a presente acção, e, em consequência, declara que o autor (A) pertence ao sexo feminino, e ordena que se altere por averbamento as referências constantes do seu assento de nascimento quanto ao sexo, de modo a passar a constar sexo feminino, bem como em relação ao nome, de modo a passar a constar (L. ... ... ... )
Sem custas, dada a isenção dos RR.”.
2. Sem custas, no recurso, dada a isenção dos RR. *
1. Por tudo o exposto, concede-se provimento à apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a qual é substituída pela seguinte:
“ O Tribunal julga provada e procedente a presente acção, e, em consequência, declara que o autor (A) pertence ao sexo feminino, e ordena que se altere por averbamento as referências constantes do seu assento de nascimento quanto ao sexo, de modo a passar a constar sexo feminino, bem como em relação ao nome, de modo a passar a constar (L. ... ... ... )
Sem custas, dada a isenção dos RR.”.
2. Sem custas, no recurso, dada a isenção dos RR. *
Lisboa, 22 de Junho 2004
Relator (Eduardo Folque de Sousa Magalhães)
1º Adjunto (Flávio Joaquim Bogalhão do Casal) (Vencido, pois entendo que devia ser integralmente confirmada a decisão recorrida.)
2º Adjunto (Rogério Sampaio Beja)
Vânia Maria Beliz Ferreira